12 de abril de 2012

O ato de atar o sapato...

Como é do conhecimento generalizado, a utilização dos sapatos com atacadores vem, pelo menos desde há cinco mil anos, 3000 a.C., apesar de a patente ter sido registada, oportunamente, por volta dos anos 70 do passado século.  Ao longo do tempo, a resistência, qualidade do material e comprimento, entre outros, do atacador ou cadarço sempre foi muito apreciada. Mas, sendo eu um leigo no modo técnico de fabrico, não vou aqui emitir juízos sobre possíveis deficiências nessa execução, e peço perdão ao leitor se, por esta decisão, lhe suprimi desde já o interesse em relação a esta crónica.
Contudo prefiro referir-me ao seu aspecto social, sobre o ato de atar um sapato. De um modo geral, é uma prática que colhe menos adeptos nos dias de hoje,algo que era corriqueiro observar-se há alguns anos, é um ato que considero à partida de suprema utilidade, numa camada superficial de análise por mais que não seja pelo fato de o ato de atar em si representar que a partir daí, por um finito mas seguro intervalo de tempo, não corremos o risco de malhar com os cornos no chão devido, lá está, ao incumprimento ou desmazelo em relação a tal tarefa.

Escrevia eu que esta é agora uma prática mais remota. Pois bem, aos poucos nota-se que se vai perdendo esse gesto na rua, mas admito que pessoas ainda o pratiquem com solenidade em casa. Mas a modernidade altera a realidade e com ela os tipos de sapatos, optando muito boa gente por outro tipo de calçado, mais na moda, talvez. Aproveito aqui também para demarcar o meu texto de instintos referentes a moda, pois o rústico em mim preferirá sempre a segurança e o conforto.
Mas confesso que até já observei com misantropia em lojas e ruas sapatilhas sem atacadores, mas apenas com os orifícios, os passantes. E pessoas em praça pública carregando abominável calçado. Ora, com franqueza... tudo bem que por exemplo o velcro até pode ter ganho o seu espaço em dias que já se contam à lareira em noites de tempestade,  e ao qual devo até atribuir mérito, apesar de não apreciar por inteiro esse tipo de atamento. Poderia estar para aqui a articular uma rábula do ofendido mas confesso que sou tolerante ao velcro, até por considerar a óbvia dificuldade na deficiência ou nas doenças reumáticas neste ponto. Mas a indulgência extingue-se nesse campo dos sapatos de atacadores, com passantes, sem os próprios cadarços. Que ultraje!

É evidente que atribuo certas inconveniências em relação ao ato. Nem tudo são rosas. É certo que ao caminhar com o grupo de amigos nos sentimos restringidos para atar o atacador desapertado , e arriscamos até alguns passos antes da decisão sóbria pela segurança, pois ao atuar, atando o sapato, cumpre perder-se tempo na passada, perder o ritmo do andamento, parar, perder o fio da conversa, ficar para trás. E talvez nestes tempos que correm, ao regressar ao grupo, com embaraçosos passinhos corridos, se possa ouvir uma ou outra boca acerca dos atacadores presentes no calçado ou até um atentado à habilidade, e consequentemente, à honra da pessoa no cumprimento da ação. Mas hoje em dia até se assiste já uma certa profissionalização na medida em que por vezes encontramos pessoas que, acelerando o ritmo, dão largos passos de avanço, como que medindo o tempo para atar o sapato, de modo a serem alcançados na altura exacta da conclusão do nó. É obviamente um reflexo da predestinação dessas pessoas para o ato de atar.
Por outro lado há a inconveniência do nó a utilizar, principalmente se tivermos formação na área dos nós, não queremos ficar mal vistos perante a sociedade, até porque existem, segundo os estudos, mais de trinta formas comprovadas de atar um cadarço corretamente. A um marinheiro ou escuteiro requer-se que tenha sempre os atacadores apertados exemplarmente, por exemplo. A decisão a tomar quanto ao nó é bastante delicada, e ao menor erro qualquer nó direito intermédio poderá resultar num processo de "nó cego" que , caso o atador não possua unhas salientes e fortes, bem como também um forte sentido de resiliência, pode tornar-se num processo difícil de reverter. Peço ao leitor que neste caso confie no meu relato pois com infelicidade eu próprio já fui sujeito a essa experiência e é algo que não desejo a ninguém. Aconselha-se, portanto, cautela e neste aspecto o ambiente familiar é o responsável em primeira instância  por uma educação vocacionada para o ato de apertar os sapatos com atacadores.
 Não quero com isto fazer juízos de valor em relação a famílias cujos representantes andam de sapatos mal apertados ou desmazelados, pois sabe-se que a rebeldia da juventude  é saudável e determinante no processo de crescimento e desenvolvimento intelectual , e até o próprio risco é marca dessa mesma tentativa de afirmação e demarcação, e nesse risco incluo essa prática de consciente desmazelo. Eu próprio, confesso, nos tempos áureos da inocente juventude me vi a comprar atacadores com o objectivo de não os atar, sim, pois a coloração dos mesmos e a sua largura apelavam preferencialmente à ostentação e não à segurança do sapato ou sapatilha. Mas quem sabe se de gestos simples como este não poderão eventualmente resultar na germinação de princípios ideológicos de índole mais fundamentalista na mente dos jovens de hoje?
É este o mais desolador retrato de uma sociedade em manifesto declínio.

2 comentários:

Unknown disse...

Confessa lá:
Isso foi só para escrever ato sem 'c', não foi?

Repara lá:
Uma pessoa para para quê?
Para para o ato de atar atacadores?

Com isto as pessoas vão deixar de parar para fazer qualquer coisa na 3ª pessoa do singular.
Muito menos para o ato de atar.

MarcoAJLopes disse...

obviamente que aproveitei para espetar uma bicada. Não me meti com o "pára", porque pelo acordo podes escrever das duas maneiras, com acento ou sem, creio eu.

Mas eu até sou a favor de um acordo que universalize o Português, custa-me bastante que haja anglo-saxões que prefiram o espanhol. Mas esta treta de tirar as letras mudas não faz sentido porque afasta o português do inglês e do francês, cujas palavras equivalentes têm as tais letras, criando ainda mais barreiras.
E com isto criei um conflito ao falar de uma coisa sem jeito nenhum com uma linguagem mais formal.